O que não queremos ver
Hoje não o vi, mas vejo-o várias vezes. Não o conheço, não sei qual o nome que lhe pertence, nem onde morava. É alto, sujo e anda sempre com uma caixa de cartão com ele. É o que o protege do frio, da chuva e talvez dos olhares das pessoas. Umas vezes está na esquina de uma rua, outras vezes num sítio abrigado perto de uma caixa de multibanco. Acho que também já o vi próximo da Loja do Cidadão à procura de um sítio para dormir.
Que será que ele faria com algum dinheiro? Talvez fosse ter com a família, se tiver um bom coração. Normalmente achamos que as pessoas que não têm um teto para dormir e comida na mesa têm bom coração. Já o vi a pedir nas ruas, já o vi a falar com as pessoas, já vi essas pessoas a darem-lhe algumas moedas, mas quando ele lhes levantava a mão para agradecer ninguém a queria. Quem é que aceitaria um simples toque de uma mão suja? Nos dias de hoje é difícil sentir compaixão pelas mais pequenas coisas. As pessoas andam sempre tão ocupadas, sem tempo para ver o que se passa à sua volta. Cada vez há mais miséria nas ruas, mas é tão difícil sentir o que quer que seja. Todos achamos que temos o direito de envelhecer junto daqueles que mais amamos, protegidos da desumanidade do mundo. Mas quem é que protege estes homens da rua?
Sei que amanhã vou passar por ele outra vez. Sei que amanhã vou sentir abandono, miséria, vou sentir o desprezo de toda a gente que passa por ele. Sei que amanhã ele se vai esconder na caixa de cartão para ninguém lhe ver a cara.
(Alguém viu o programa E Se Fosse Consigo ontem na SIC? Fala da realidade destas pessoas. Aconselho toda a gente a ver.)